domingo, 14 de agosto de 2011

ERA UMA VEZ - Luís Fernando Veríssimo

Era uma vez... numa terra muito distante...uma princesa linda, independente e cheia de auto-estima.
Ela se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu castelo era relaxante e ecológico...
Então, a rã pulou para o seu colo e disse: linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito.
Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformei-me nesta rã asquerosa.
Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu lindo castelo.
A tua mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os nossos filhos e seríamos felizes para sempre...
Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma:
- Eu, hein?... nem morta!

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

VOCÊ É UM NÚMERO - Clarice Lispector


    Se você não tomar cuidado, vira um número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no com um número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número.Seu título de eleitor é um número.Profissionalmente falando você também é.Para ser motorista,tem carteira com número,e chapa de carro.No Imposto de Renda,o contribuinte é identificado com um número.Seu prédio,seu telefone,seu numero de apartamento _ tudo é número.
     Se é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem propriedade, também. Se é sócio de um clube, tem um número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras, tem o número da cadeira.
     É por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas de Física. Não estou brincando; vou mesmo tomar aulas de Matemática; preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral.
     Se você é comerciante, seu alvará de localização o classifica também.
     Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência, também é solicitado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio, recebe um número. Para tomar um avião, dão-lhe um número. Se possui ações, também recebem um, como acionista de uma companhia. E claro que você é um número no recenseamento. Se é católico, recebe número de batismo. No registro civil ou religioso, você é numerado. Se possui personalidade jurídica, tem. Enquanto a gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito também.
     Nós não somos ninguém?Protesto. Aliás é inútil o protesto.E vai ver o meu protesto também é um número.
     Uma amiga minha contou que, no Alto Sertão de Pernambuco, Uma mulher estava com o filho doente, desidratado, foi para o Posto de Saúde. E recebeu a ficha número 10. Mas dentro do horário previsto pelo médico a criança não pode ser atendida porque só atenderam até o número 9. A criança morreu por causa de um número.
     Se há uma guerra, você é classificado por um número. Numa pulseira com placa metálica, se não me engano. Ou numa corrente de pescoço, metálica.
     Nós vamos lutar contra isso. Cada um é um, sem número. O si - mesmo é apenas si - mesmo.
     E Deus não é um número.
     Vamos ser gente, por favor!Nossa sociedade esta nos deixando secos como um número seco, como um osso branco seco exposto ao sol. Meu número íntimo é 9. Só. 8. Só. 7. Só. Sem somá-los nem transformá-los em novecentos e oitenta e sete, Estou me classificando com um número?Não, a intimidade não deixa. Veja, tentei varias vezes na vida não ter numero e não escapei.O que faz com que precisemos de muito carinho,de nome próprio,de genuinidade.Vamos amar que amor não tem numero.ou tem? 

VISTA CANSADA - Otto Lara Resende


            Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez?Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua; não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou. Fugiu enquanto pôde do desespero que o roía _e daquele tiro brutal.
            Se eu morrer, morre comigo certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.
            Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional de passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.
            Como era ele?Sua cara?Sua voz?Como se vestia?Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O habito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. Vemos?Não, não vemos.
            Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por ai que se instala no coração o monstro da indiferença.

VAI - Ivan Ângelo


            Quer ir?Vai. Eu não vou segurar. Uma coisa que não dá certo é segurar uma pessoa contra a vontade, apelar pro lado emocional. De um jeito ou de outro isso vira contra a gente mais tarde: não fui porque você não deixou, ou: não fui porque você chorou. Sabe, existem umas harmonias em que é bom a gente não mexer. Estraga a música. Tem a hora dos violinos e tem a hora dos tambores.
            Eu compreendo, compreendo perfeitamente. Olha, e até admito: você muda pra melhor. Fora de brincadeira, acho mesmo. Eu sei das minhas limitações, pensei muito nisso quando tava tentando te entender. É, é um defeito meu, considerar as pessoas em primeiro lugar. Concordo. Mas não tem mais jeito, eu sou assim. Paciência.
            Sabe por que eu digo que você muda pra melhor?Ele faz tanta coisa melhor que eu!Verdade. Tanta coisa que eu não aprendi por falta de tempo, de oportunidade - ora, pra que ficar me justificando?Não aprendi por falta de jeito, de talento, essa é que é a verdade. Eu sei ver as qualidades de uma pessoa, mesmo quando é um homem que vai roubar minha namorada. Roubar não: ganhar.
            Compara. Ele dança muito bem, ate chama a atenção. Campeão de natação, anda de bicicleta como um acrobata de circo, é bom de moto, sabe atirar, é fera no volante,caça e acha,monta a cavalo,mete o braço,pesca,veleja,mergulha... Não tem companhia melhor.
            Eu danço mal, você sabe. Não consegui ultrapassar aquela fronteira larga entre a timidez e a ousadia, entre a discrição e o exibicionismo, que separa o mau e o bom bailarinos. Nunca fui muito alem daquela fase em que uma amiga compadecida precisava sussurrar no meu ouvido: dois pra lá, dois pra cá.
            Atravessar uma piscina eu atravesso, uma vez, duas talvez, mas três?Menino de cidade, e modesto, não tive córrego nem piscina. É com olhos invejosos que eu o vejo na água, afiado como se tivesse escamas.
Moto?Meu Deus, quem sou eu. Pra ser bom nisso é preciso ter aquele ar de quem vai passar roncando na frente ou por cima de todo mundo - e esse ar ele tem.
Montar?É preciso ter essa certeza, que ele tem, de que cavalo foi feito para ser domado, arreado, freado, ferrado e montado. Eu não tenho. Não tá em mim. Eu ia montar como se pedisse desculpas ao cavalo pelo incomodo, e isso não dá, não pode dar um bom cavaleiro.
O jeito como ele dirige um carro é humilhante. Já viajei com ele, encolhido e maravilhado. Você conhece o jeitão, essa coisa da velocidade. Não vou ter nunca aquela noção de tempo, a decisão, o domínio que ele tem. Cada um na sua. Eu troquei a volúpia de chegar rapidinho pelo prazer de estar a caminho. No amor também.
Caçar... Dar um tiro num bicho... Ele tem isso, a certeza de que o homem é o senhor do universo, tudo ta aí pra ele. Quem me dera. Quando penso naquela pelota quente de aço entrando no corpo do bicho, rasgando a carne. Quebrando ossos... Não, não tenho coragem.
Aí é que eu tou pedindo mesmo, no capitulo da coragem. Ele faz e acontece, já vi. Mas eu?Quantas vezes já levei desaforo pra casa. Levei e levo. Se um cachorro late pra mim na rua, vou lá e mordo ele?Eu não. Mudo de calçada.
Outra coisa: ele é mais engraçado do que eu. Fala mais alto, ri mais a vontade, às vezes chama ate um pouco a atenção, mas... É da idade. Lembra aquela vez que ele levou um urubu e soltou na igreja no dia do casamento do Carlinhos?E aquela vez que ele sujou de coco de cachorro as maçanetas dos carros estacionados na porta da boate?Lembra do sucesso?Os jornais falaram por dias naquilo. Não consigo ser engraçado assim. Não tá em mim. Por isso que eu não tenho mágoa. Ele é muito mais divertido. E mais bonito também.
Vai.
Olha, não quero dizer que o que eu vou falar agora tenha importância pra você, que possa ter influído na sua decisão, mas ele tem mais dinheiro também, você sabe. Ele tem até, sabe?,Aquele ar corajoso dos ricos, aquela confiança de entrar nos lugares. Eu não. Muito cristal me intimida. Os meus lugares são uns escondidos onde o garçom é amigo, o dono me confessa segredos, o cozinheiro acena lá do quadrinho e me reserva o melhor naco. É mais caloroso, mas não compensa o brilho, de jeito nenhum.
            Ele é moderno, decidido. Num restaurante não te oferece primeiro a cadeira, não observa se você ta servida, não oferece mais vinho. Combina, não é?,Com um tipo de feminismo. A mulher que se sente,peça o que quiser,sirva-se, chame o garçom quando precisar. Também não procura saber se você ta satisfeita. Eu sei que é assim que se usa agora. Até no amor já eu sou meio antigo, ultrapassado, gosto de umas cortesias.
            Também não vou dizer que ele é melhor do que eu em tudo. Isso não. Eu sei, por exemplo, uns poemas de cor. Li alguns livros, sei fazer papagaio de papel, posso cozinhar uns dois ou três pratos com categoria, tenho certa paciência pra ouvir, sei uma ótima massagem para dor nas costas, mastigo de boca fechada, levo jeito com crianças, conheço umas orquídeas, tenho facilidade pra descobrir onde colocar umas carícias, minhas camisas são lindas, sei umas coisas de cinema, não bato em mulher.
            E não sou rancoroso. Leva a chave para o caso de querer voltar.

POESIA MATEMÁTICA - Millôr Fernandes


            As folhas tantas do livro matemático, um Quociente apaixonou-se um dia doidamente por uma Incógnita.
Olhou-a com o seu olhar inumerável e via-a do ápice à base; uma figura impar; olhos rombóides, boca trapezóide, corpo retangular, seios esferóides.
Fez da sua uma vida paralela a dela, ate que se encontraram no infinito.
“Quem és tu?” - indagou ele em ânsia radical.
“Sou a soma dos quadrados dos catetos. Mas pode me chamar de Hipotenusa”.
E de falarem descobriram que eram (o que em aritmética corresponde a almas irmãs) primos entre si.
E assim se amaram ao quadrado da velocidade da luz numa sexta potenciação traçando, ao sabor do momento e da paixão, retas curvas, círculos e linhas senoidais nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das formulas euclidianas e os exegetas do universo finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar, constituir um lar, mais que um lar, um perpendicular.
Convidaram para padrinhos o Polígono e a Bissetriz.
E fizeram planos e equações e diagramas para o futuro, sonhando com a felicidade integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones muito engraçadinhos
E foram felizes Ate aquele dia em que tudo vira afinal monotonia.
Foi então que surgiu o Maximo Divisor Comum, freqüentador de círculos concêntricos viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela, uma grandeza absoluta, e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu que com ela não formava mais um todo, uma unidade.
Era um triângulo tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a relatividade e tudo o que era espúrio passou a ser moralidade, como alias em qualquer sociedade.

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL - Manuel Bandeira


João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num
[barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

PEGADAS NA AREIA - Autor Desconhecido


            Uma noite eu tive um sonho
            Sonhei que estava andando na praia, com o Senhor, e através do Céu passavam cenas da minha vida. Para cada cena que se passava, percebi que eram deixados dois pares de pegadas na areia: um era o meu e outro era do Senhor.
            Quando a última cena da minha vida passou diante de nós olhei para trás, para as pegadas na areia e notei que muitas vezes, no caminho da minha vida havia apenas um par de pegadas na areia.
            Notei também, que isso aconteceu nos momentos mais difíceis e angustiosos do meu viver. Isso entristeceu-me deveras e perguntei então ao Senhor:
            -Senhor, Tu me disseste que uma vez que eu resolvi Te seguir, Tu andarias sempre comigo todo o caminho mas, notei que durante as maiores atribulações do meu viver havia na areia dos caminhos da vida, apenas um par de pegadas. Não compreendo por que, nas horas que eu mais necessitava de Ti, Tu me deixastes.
            O Senhor me respondeu:
            -Meu precioso filho, Eu te amo e jamais te deixaria nas horas da tua prova e do teu sofrimento. Quando viste na areia apenas um par de pegadas, foi exatamente aí que Eu ,nos braços...te carreguei.

NO MEU TEMPO - Luís Fernando Veríssimo


No meu tempo de freqüentador de aulas (“estudante” seria um exagero) era assim. A não ser quando a professora ou professor designasse o lugar de cada um segundo uma ordem, como a alfabética – e nesse caso eu era condenado pelo sobrenome a sentar no fundo da sala, junto com os Us, os Zs e os outros Vs -, os alunos com uma geografia social espontânea, nem sempre bem definida, mas reincidente.
Na frente sentava a Turma do Apagador, assim chamada porque era a eles que a professora recorria para ajudar a limpar o quadro-negro e os próprios apagadores. Nunca entendi bem por que se sujar com pó de giz era considerado um privilégio, mas a Turma do Apagador era uma elite, vista pelo resto da aula como os favoritos do poder e invejada e destratada com a mesma intensidade. Quando passavam para os graus superiores os apagadores podiam perder sua função e deixar de ser os queridinhos da tia, mas mantinham seus ligares e sua pose, esperando o dia da reabilitação. Como todas as aristocracias tornadas irrelevantes.
Não se deve confundir a Turma do Apagador com os Certinhos e os Bundas de Aço. Os certinhos ocupavam as primeiras fileiras para não se misturarem com a Massa que sentava atrás, os Bundas de Aço para estarem mais perto do quadro-negro e não perderem nada. Todos os Apagadores eram Certinhos, mas nem todos os Certinhos eram Apagadores, e os Bundas de Aço, por exemplo, eram excêntricos, introvertidos, ansiosos - enfim, esquisitos. Já os certinhos autênticos se definiam pelo que não eram. Não eram puxa-sacos como os Apagadores nem estranhos como os Bundas de Aço nem medíocre como a Massa e nem bagunceiros como as Criaturas do Abismo, que sentavam no fundo. Sua principal característica era os livros encapados com perfeição.
            Atrás dos Apagadores, dos certinhos e dos Bundas de Aço ficava a Massa, dividida em núcleos, como o núcleo do Nem Aí, formado por três ou quatro meninas que ignoravam as aulas, davam mais atenção aos próprios cabelos e, já que tinham esse interesse em comum, sentavam juntas; o Clube de Debates, algumas celebridades (a garota mais bonita da aula, o cara que desenhava quadrinho de sacanagem) e seus respectivos círculos de admiradores, e nos do Centrão Desconsolado,que só tínhamos em comum a vontade de estar em outro lugar.
            E no fundo sentavam as Criaturas do Abismo, cuja única comunicação com a frente da sala eram os ocasionais mísseis que disparavam lá de trás e incluíam desde o gordo que arrotava em vários tons ate uma proto-dark,provavelmente a primeira da historia,com tatuagem na coxa.
            Mas isso tudo, claro, foi na Idade Média

EU SEI MAS NÃO DEVIA - Marina Colassanti


            Eu sei, mas não devia. Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
            A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltada porque esta na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo de viagem. A comer sanduíches porque não da para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar pro ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
            A gente se acostuma abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita a ler todo dia de guerra, dos números de longa duração.
            A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: ”hoje não posso ir”. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
            A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. A lutar para ganhar o dinheiro com que se paga. E a ganhar menos do que ganhar. E a fazer fila para pagar. E a pagar muito mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagara mais. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
            A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir revistas ver anúncios. A ligar a televisão e assistir comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado a infindável catarata dos produtos.
            A gente se acostuma à poluição. A luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. As bactérias de água potável. A contaminação da água do mar.a lente morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, ao colher fruta no pé ,a não ter  sequer uma planta.
            A gente se acostuma a pequenas coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente se senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só o pé e sua no resto do corpo. Se o trabalho esta duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer,a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre o sono atrasado.
            A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto se acostumar, se perde de si mesma. 

DOIS E DOIS: QUATRO - Ferreira Gullar


Como dois e dois são quatro
            Sei que a vida vale a pena
            Embora o pão seja caro
            E a liberdade, pequena.

            Como teus olhos são claros
            E tua pele, morena

            Como é azul o oceano
            E a lagoa, serena

            Como um tempo de alegria
            Por trás do terror me acena

            E a noite carrega o dia
            No seu colo de açucena

            -sei que dois e dois são quatro
            Sei que a vida vale a pena

            Mesmo que o pão seja caro
            E a liberdade, pequena. 

ARTE DE SER FELIZ - Cecília Meireles, Escolha o seu sonho


(...)
            Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde, e, em silencio,ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma regra: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caiam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.
            Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Veiga. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo esta certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
            Mas,quando falo dessas pequenas felicidades certas que estão diante de cada janela,uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante de minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprendera olhar, para poder vê-las assim.

AMIGOS - Luís Fernando Veríssimo


       Os dois eram grandes amigos. Amigos de infância. Amigos de adolescência. Amigos de primeiras aventuras. Amigos de se verem todos os dias. Até mais ou menos os 25 anos. Aí, por uma destas coisas da vida – e como a vida tem coisas! – passaram muitos anos sem se ver. Até que um dia.
     Um dia se cruzaram na rua. Um ia numa direção, o outro na outra,Os dois se olharam,caminharam mais alguns passos e se viraram ao mesmo tempo, como se fosse coreografado. Tinham-se reconhecido.
     -Eu não acredito!
     -Não pode ser!
     Caíram um nos braços do outro. Foi um abraço demorado e emocionado. Deram-se tantos tapas nas costas quantos tinham sido os anos de separação.
     -Deixa eu te ver!
     -Estamos aí.
     -Mas você está careca!
     -Pois é.
     -E aquele bom cabelo?
     -Se foi...
     -Aquela cabeleira.
     -Muito Gumex...
     -Fazia um sucesso.
     -Pois é.
     -Era cabeleira pra derrubar suburbana.
     -Muitas sucumbiram...
     -Puxa. Deixa eu ver atrás.
     Ele se virou para mostrar a careca atrás. O outro exclamou:
     -Completamente careca!
     -E você?
     -Espera aí. O cabelo está todo aqui. Um pouco grisalho, mas firme.
     -E essa barriga?
     -O que é que a gente vai fazer?
     -Boa vida...
     -Mais ou menos...
     -Uma senhora barriga.
     -Nem tanto.
     Aposto que futebol, com essa barriga...
     -Nunca mais.
     -E você era bom, hein?Um bolão.
     -O que é isso.
     -Agora ta com a bola na barriga.
     -Você também.
     -Barriga, eu?
     -Quase do tamanho da minha.
     -O que é isso?   
     -Respeitável.
     -Quem te dera um corpo como o meu.
     -Mas eu estou com todo o cabelo.
     -Estou vendo umas entradas aí.
     -O seu só teve saída.
     Ele se dobra de rir com a própria piada. O outro muda de assunto.
     -Fazem o que?Vinte anos?
     -Vinte e cinco. No mínimo.
     -Você mudou um bocado.
     -Você também.
     -Você acha?
     -Careca...
     -De novo a careca? Mas é fixação.
     -Desculpe, eu...
     -Esquece a minha careca.
     -Não sabia que você tinha complexo.
     -Não tenho complexo. Mas não precisa ficar falando só na careca,só na careca.Eu estou falando nessa barriga indecente?Nessas rugas?
     -Que rugas?
     -Ora, que rugas.
     -Não. Que rugas?
     -Meu Deus, sua cara está que é um cotovelo.
     -Espera um pouquinho...
     -E essa barriga?Você não se cuida não?
     -Me cuido mais que você.
     -Eu faço ginástica, meu caro. Corro todos os dias. Tenho saúde de cavalo.
     -É. Só falta a crina.
     -Pelo menos não tenho barriga de baiana.
     -E isso o que é?
     -Não me cutuca.
     -Me diz. O que é?Enchimento?
     -Não me cutuca!
     -E esses óculos são pra quê?Vista cansada?Eu não uso óculos.
     -É por isso que está vendo barriga onde não tem.
     -Claro, claro. Vai ver você tem cabelo e eu é que não estou enxergando.
     -Cabelo outra vez!Mas isso já é obsessão. Eu,se fosse você,procurava um médico.
     -Vá você, que está precisando. Se bem que velhice não tem cura.
     -Quem é que é velho?
     -Ora, faça-me o favor...
     -Você.
     -Você.
     -Você!
     -Ruína humana.
     -Ruína não.
     -Ruína!
     -Múmia!
     -Ah, é?Ah, é?
     -Cacareco!Ou será cacareca?
     -Saia da minha frente!
     Separaram-se, furiosos. Inimigos para o resto da vida.

A PALAVRA - Rubem Braga


            Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito-como não imaginar que, sem querer, feri alguém? As vezes sinto numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de magoas. Imprudente oficio é este, de viver em voz alta.
            As vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
            Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi;  deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento - e depois esqueci.